quarta-feira, 8 de abril de 2009

Haja o que houver, não tome a bebida

Quando eu cheguei naquele bar, já passava das duas da manhã. Tinha andado por mais de três horas, tentando saber onde eu estava, pra onde eu estava indo e como eu chegaria em casa.

Maldito dia.

Não bastasse o trabalho frenético, as horas extras que ninguém nunca me pagaria e o seqüestro relâmpago, do qual, infelizmente, eu saí vivo, os caras ainda me deixaram num lugar onde eu nunca estive.

As ruas são todas idênticas.

Ainda se eles tivessem me deixado o celular, ou algum dinheiro, mas não. me deixaram aqui sem nenhuma chance de descobrir onde estou.

É madrugada e, pra completar a minha sorte, o céu não tem nem lua, nem estrelas. se eu fosse calmo o bastante, esperaria o sol nascer -- se é que ele vai nascer --, para poder, ao menos, me guiar por suas direções, mas, ao invés disso, eu andei. Sem nenhum rumo, atrás de uma porta de garagem aberta com dois ou três pinguços jogando sinuca que possam me dar alguma direção.

Olho no meu relógio -- tão vagabundo que eles não quiseram levar -- e já são quase três da manhã. O boteco parece ser gerido pelos pinguços. Fico esperando uma eternidade, encostado no balcão, e ninguém aparece. Fico tentado a pegar a batatinha que está pendurada na estufa vazia, mas, ao contrário daqueles que me largaram nesse fim de mundo, não sou ladrão e tenho princípios. Eu espero. Às três e quinze, entra pela porta de clientes uma jovem. Acho exótico, afinal, era uma moça bonita, casualmente vestida, no meio da madrugada, num boteco de quinta num fim de mundo.

Tudo fez sentido quando ela passou para dentro do balcão. Ela me olhou de soslaio, quando eu só consegui balbuciar um "moça...", e se virou, já com um copo americano em mãos e uma garrafa de cachaça entornando o copo, que ela coloca na minha frente.

"Moça, me desculpe, mas não vou poder pagar por isso", foi a primeira coisa que me ocorreu a dizer, em reação ao copo de pinga. "Beba logo. O que veio fazer aqui, afinal? Posso te garantir que não foi por acaso que chegou aqui".

Legal. Agora, estou perdido num bar no meio do nada, às três da manhã, e a dona do bar é louca. Tentei parar com o turbilhão de informações e possibilidades que passavam pela minha cabeça para me concentrar no meu problema principal. "Moça, eu fui sequestrado e largado a uns sete quilômetros daqui. Faz três horas que estou andando e só vejo casas e árvores. Seu boteco é o primeiro indício de que existe vida nessa cidade fantasma. Você pode me ajudar com um troco e me informar onde eu posso pegar um ônibus para o centro?"

Ela deu uma pequena risada que, olhando pelo lado positivo, ao menos, mostrava que ela havia prestado atenção em mim. "Aqui não passa ônibus, moço", me respondeu. Ela tinha uma voz feminina e bonita, apesar do peso e do tom das frases que ela proferia. "Nem tem 'estabelecimentos comerciais', como 'cê mesmo chamou minha espelunca. Eu não tenho dinheiro. A única coisa que eu tenho pra te ajudar, eu já te dei. Agora, bebe logo, se é que você quer sair dessa."

Eu não conseguia acreditar na insanidade dela. No que um copo de cachaça iria me ajudar naquela altura do campeonato? No mínimo, eu iria ficar bêbado e virar mendigo até ser achado por alguém em alguma sargeta, por aí.

"Eu não posso beber, moça. Estou perdido, preciso achar a minha casa!"

Ela se virou para mim com uma cara zangada, porém, complacente. "Tá bom. Você não quer fazer do jeito fácil, né? Então, vem comigo, eu vou te ajudar", disse ela. Eu quase não conseguia mais acreditar na falta de sentido em qualquer frase que ela proferia. Ela era insana! E estava me convidando a entrar numa pequena porta que tinha ao lado de sua estante de bebidas, quase escondida.

Três e meia. Essa era a hora, e dois dos três bebuns já haviam ido embora. Ela percebeu que eu olhei para eles: "não se preocupe, não há o que roubar, aqui. E mesmo se houvesse, não o fariam. É tarde demais."

Mais uma. Talvez eu comece a contar a quantidade de frases sem sentido que essa mulher soltar daqui por diante. Mas o mais estranho é a confiança que eu sinto na figura dela. Qualquer pensamento de ela é uma psicopata se esvai rapidamente no momento que fixo meus olhos naquela mulher. 

Apesar disso, eu reluto um pouco a levantar do meu banquinho, mas acabo aceitando o convite e a sigo para dentro da porta.

É um corredor tão estreito que eu mal posso passar por ele de frente. Ela não sente dificuldade nenhuma: seu corpo é esguio e o corredor parece feito para ela. Sua pele é tão branca que, se não estivesse tão escuro, eu poderia ver através dela. Seu cabelo, negro como a noite de hoje, é grosso, liso e comprido até a cintura fina da jovem. Cinco metros adiante, uma escada, ainda mais estreita.

Quando, com muita dificuldade, eu chego ao porão, ao fim da escada, sinto um calafrio. O lugar é,  a exemplo da roupa a jovem, todo preto. Só enxergamos algo   graças a uma pequena lâmpada pendurada num fio de eletricidade no meio do teto baixíssimo. Livros e mais livros cobrem as pequenas paredes, além de pilhas de livros antigos e enormes espalhadas pelo pequeno chão. Quem diria, a jovem e maluca dona de uma espelunca frequentada por bêbados é uma louca, também, por leitura.

Ela ajeita algumas pilhas de livros de forma que eles componham um banco e senta, dizendo para eu fazer o mesmo com outras pilhas. Eu o faço e, assim que eu sento, ela começa um interrogatório.

"O que você acha que veio fazer aqui, neste lugar?", foi a primeira pergunta que ela fez.

"Nada. Fui vítima de um sequestro relâmpago. Levaram meu carro, meu dinheiro, meus pertences, meu telefone. Me largaram no meio do nada, de noite, num bairro onde não existem pessoas. Pudera. Andei alguns quilômetros e não achei um lugar onde alguém poderia comprar sequer um pão."

"E você tem absoluta certeza de que o fato de estar aqui é por acaso?"

"Claro que sim. Isto é tão óbivio quanto o resultado de um mais um. Eu fui largado num bairro onde nunca estive na vida e vaguei por três horas seguidas sem direção. Só parei quando achei seu bar, para pedir uma ajuda e informações. Ao invés disso, fui convidado a beber um copo de cachaça e, ao negar, fui trazido a um quarto preto onde estou respondendo a um interrogatório sem sentido e, a propósito, não sei por que. Acho que vou continuar procurando alguém normal para me ajudar a sair desse fim de mundo."

Eu me levanto em direção à porta, quando sinto sua delicada mão direita segurar meu braço direito com uma convicção que nunca havia visto antes. Ela tinha um semblante de pena por mim que já começava a me irritar.

"Se quer mesmo sair daqui, é melhor escutar o que tenho para falar. Se sair deste boteco, não verá ninguém até o Sol nascer. Quando o Sol nascer, vai desejar que ele se ponha logo. E, quando ele se puser, vai achar este lugar aqui, de novo, e não vai mais dizer não à minha cachaça."

Aquilo me assustou. Inexplicavelmente, eu sentia, no fundo, que ela sabia o que estava dizendo. Ela me leva a mais uma porta e, estranhamente, saímos num lugar diferente. Rapidamente percebo que é um cemitério e que está garoando. andando mais um pouco, vejo pessoas. Mais perto, vejo que conheço estas pessoas. É um velório, provavelmente, de alguem que conheço. Não sei como cheguei aqui, mas deve haver algum significado.

Ela pára , me segura e me faz a última pergunta: "você foi feliz em sua vida? Acha que tem algo a dizer a alguém? Sente que ficou faltando fazer algo?"

Estranhamente, eu sabia a resposta. Não. Já havia feito tudo. Não havia deixado nada para trás. Claro que, agora, me dava vontade de entrar naquela sala e dizer à minha mulher o quanto eu a amo, ou para a minha filha o quanto ela significa para mim, mas, provavelmente, não era disso que ela falava.

Minha vida foi intensa. Até este momento, eu já havia realizad todos os meus sonhos, e não fazia mis sentido continuar. Se fui uma boa pessoa? Acredito que sim. Nunca deixei de ajudar quem precisava de mim. Sempre fiz o que sentia ser melhor para a minha família.

Talvez fosse a hora de partir, mesmo.

Ela soltou um sorriso. Me disse que eu podia sussurrar no ouvido de minha mulher palavras de alento e, depois, voltar, para completar minha jornada. Foi o que fiz.

"Querida, te espero aqui. Haja o que houver, não aceite a bebida. Te amo e continuarei te amando pela eternidade, haja o que houver em sua vida depois de minha morte. Cuide bem da nossa filha."

Quando eu volto, há uma porta no meio do nada. A moça de preto abre a porta para mim, e eu sinto, ao passar pela porta, que não vou ficar aqui por muito tempo. Pelas conversas, vou voltar à minha família. Vou ter o meu mesmo sangue. Vou ser meu próprio filho. Mas não saberei disso quando estiver lá.

Que bom. Viver é gratificante quando se vive ao lado de pessoas como minha mulher. Pessoas que amamos e que cuidam de nós. Pessoas que nos ajudam a fazer o bem. 

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